Foi o refugio perfeito para o descanso d'alma aflita. Uma cidadezinha ao sul de terras estrangeiras onde o tempo havia estacionado. As construções medievais, as casas velhas de madeira corroidas pelas primaveras contrastavam-se com a grama das praças e as copas verdes de cedros imensos que alcançavam o topo de um céu cinzento. Um cenário ideal para ser e estar comigo mesmo, um lugar meu.
Em passos pequenos por entre vielas e becos resolvi parar em um café. Acomodei-me ao lado de fora e pedi um
schnaps*. Em frente ao local havia uma pequena praça ornamentada com gérberas laranja e uma populosa massa de pombos. Bem ao centro um senhor grisalho em pé parado quebrava a imagem monótona do lugar, uma figura um tanto quanto curiosa. Vestia um colete verde sobre posto por um fraque vinho de camurça e calças preta de veludo. Seus cabelos desgrenhados e os pés pequenos mais lhe rendiam a pitoresca imagem de um duende irlandes expulso de um conto de fadas por ter perdido o encanto nas crianças. Já não bastando, como entreterimento aos olhos de forasteiros, o velho em troca de moedas tocava uma caixinha de música rudimentar que mais se ouvia o barulho da manivela do que a melodia. A música resoava pela praça como a chegada de um circo decadente onde as mulheres já não mais são barbadas.
O velho me saia de foco ao pedir outro
schnaps. Forte e amargo, igual ao preço que se paga por perder um amor. Mas a questão não é essa, e as pequenas sutilezas daquele lugar iam dando cores aos meus olhos.
Não muito distante dalí, começo a prestar a atenção na desenvoltura trôpega de um rapaz que caminhava pela praça e por entre as mesas dos cafés abordando as pessoas. Todas as vezes que o rapaz parava alguém ou um grupo de pessoas tinha-se a impressão de que ele falava uma inteira história de vida em questão de minutos, mas sempre recebia um balanço das cabeças alheias; de quem quer dizer: "Hoje não. Obrigado, mas não. Não!" Graciosamente o rapaz se despedia agradecendo com a mão esquerda erguida. Sem insistir voltava a perambular carregando consigo uma bolsa, pranchetas e papéis rabiscados com caricaturas de famosos e esboços de rostos de pessoas que um dia passaram pelas mãos desse artista de rua. Com certeza não era ninguém que chamasse a atenção, a não ser pelas abordagens, mas que de alguma forma, na condição de solitário observador, algo aguçou minha curiosidade. Cada vez mais ele se aproximava de onde eu estava. O rapaz vestia uma blusa branca e por debaixo uma outra azul sobressaia cintura abaixo com pequenos furos e rasgos denotando um estilo desleixado ou a falta de dinheiro mesmo. Um cachecol em tons de marrom que mais lhe parecia sufocar e sapatos de couro desgastados que provavelmente fora comprado em uma feira de antiguidades vendido por sobreviventes de guerra. O mais curioso era a barra da calça dobrada em ambas as pernas um pouco acima do calcanhar mostrando suas canelas como quem vai pesacr em um rio raso, ingenuidade.
O sol ia se pondo junto com as inúmeras pessoas que transitavam pela praça e vielas, a tarde se acabava como uma tomada única de um plano cinematográfico onde as cores, sons, indivíduos e movimento compunham a imaginária produção do meu próprio filme. Apesar da plenitude descritiva, parte de mim tinha a necessidade de compartilhar cada momento e fragmentos com pessoas que um dia passaram pela minha vida. Como se não bastasse a companhia de mim mesmo, um medo maior da solidão do que da própria morte.
A sobriedade da cidade ia se perdendo aos mesmos instantes que a minha. Mais um
schnaps descia em tragos quando uma mão sobresaltou em meu ombro e no meu ouvido gritado um "Boa Noite! Com Licença!". O susto me levou a derramar o licor como quem baba de tolice, e gritei: "
ay givot!". Ao olhar para quem me assustara notei que era o jovem artista.
- Fala íidiche? perguntou ele.
- Não. respondi meio zonzo.
- Então por que...
- Força do hábito, longa história.
- Tudo bem, desculpa tê-lo assustado. Não era minha intenção. Eu me chamo Kresten e vendo trablhos artísticos. Pinturas, desenhos e caricaturas. Estaria interessado? Tenho certeza que não irá se arrepender.
Percebi que eu seria a próxima vítima, mas que mal faria me render a este momento? O quão distante seria nossos mundo para de imediato rejeitar uma gentileza desconhecida. Não me contive:
- Tenha a bondade, sente-se comigo. Algo para beber? Dois
schnaps.
- Obrigado. Respondeu com certa estranheza.
- Confesso que o observei esta tarde daqui do café e acho que não teve muito sucesso hoje. Mas não pense que sou um maníaco que esteja lhe perseguindo.
Ele riu sem graça mostrando seu dente canino encavalado, um sorriso torto de um trago amargo.
- De vez em quando eu venho aqui tentar algumas moedas. Fora que eu me distraio do mundo quando estou desenhando. Mesmo que seja o rosto de alguém que nunca mais irei ver. Mas a cada linha de expressão que eu passo paro o papel me faz imaginar a história de cada um. Como, quantas vezes as linhas laterais dos olhos foram marcadas com risos e lágrimas? Isso me fascina...
As palavras ganhavam maiores proporções e as perguntas menos impessoais. Nossas histórias de alcova sairam boca afora. Haviamos esquecido o propósito do início da conversa, mesmo que inconsciente, o "encontro" de "um" que precisava expor seus sentimentos com "outro" que tinha medo de ficar sozinho ganhou um novo propósito. Qual? Não sei. Mas tenho a certeza de que estávamos alí, bastava.
Dentro de inúmeras curiosidades que nos mantinham conversando uma já estava fazendo minha língua coçar. Perguntei quando ele começou a desenhar.
Suas sobrancelhas se levantaram como quem sabe que a resposta será difícil para uma pergunta simples. Ficou em silêncio por um tempo. Seus olhos verdes tornaram-se opacos e gentilmente logo eu retirei a pergunta. Ele não hesitou e respondeu: "Por obsessão". Da sua boca a história começou a desenrolar, seus olhos fitavam o céu e as mãos com os dedos entrecruzados davam a imagem de quem estava a rezar. As palavras tinham peso.
"
Era Outono quando tudo começou. Eu estava nessa mesma praça passando o tempo com meus amigos. Tomando vinho enquanto pensavamos em nossas vontades e almejos juvenis. Quando eis que meu olhar se prende em uma garota que passava. Seus cabelos ruivos ondulados quase lhe escondiam a face delicadamente pintada de sardas iluminavam o dia cinzento e seus olhos azuis demosntravam como o céu deveria estar. Uma pintura. Não conseguia parar de olhar, mesmo que tentasse. A poucos metros ela parou cumprimentando conhecidos e por alí ficou. Continuei olhando. Até que ela percebeu e nossos olhares se cruzaram, disfarcei olhando para cima movimentando o meu corpo como se eu estivesse disperso. Mas ela continuou a me olhar e sorriu. Senti-me um palhaço. Ela então, caminhou em direção a um bar e eu não pensei duas vezes, fui atrás. Chegando lá, eu me apresentei e fiz todos os cortejos elegantes que alguém enfeitiçado poderia fazer para ao menos saber o nome da pessoa. Ela continuava a rir, imaginei quais tolices havia eu cometido. Desculpando-se ela disse que achava engraçado como eu usava as barras da calça dobradas até o calcanhar em pleno Outono. Uma condição desprovida de justificativas que fazia jus a minha beleza única e instigante. Quis casar com ela naquele instante. Ninguém nunca havia me elogiado por quem eu era ou por algo que eu nunca chamaria de beleza. Depois desse dia nunca nos separamos.
Passamos verões e invernos convictos de nossa lealdade. Até que um dia ela se foi. Sem explicações, rastros, foi-se. Para sempre.
Desde então eu fecho meus olhos para lembrar do rosto dela, do olhar, do sorriso e do seu cheiro. Com medo de esquece-la eu comecei todos os dias a desenhar seu rosto em qualquer pedaço de papel que eu encontrava. Uma obsesão dolorosa, mas era a única maneira de manter vivo esse amor que nunca me fora consentido. Um amor que o mantenho vivo nas pequenas sutilezas do dia a dia, como: ao fazer um retrato de alguém eu discretamente traço as linhas e pequenos detalhes do rosto dela no desenho de outras pessoas, para onde sequer forem essas pessoas desconhecidas levarão marcadas em seus retratos um pouco da minha lembrança. Que se epalhe pelo mundo. Até mesmo nas barras da calça que eu nunca desfiz."
(Nesse entremeio do desenrolar da história do Kresten, eu tive a idéia de pegar um lápis e uma de suas folhas em branco espalhadas na cadeira ao lado. Não sei como, mas a medida que o rapaz falava eu ia desenhando sua história como um quadrinho. Desprovido de habilidades plásticas fui feliz em riscos, quadrados e circulos. Uma infatilidade rústica. Percebendo ou não no que eu estava fazendo Kresten não se interrompeu e nem a mim)
Apesar do final nada feliz Kresten não parecia abalado, era tranquilo no seu ar. Parecia que havia retirado um peso de suas costas, algo que há anos estava preso em acalanto.
Antes de qualquer coisa a dizer sobre o que eu acabara de ouvir me desculpei pela indelicadeza de desenhar enquanto ele falava. Entreguei a ele o desenho e disse que algum dia alguém teria que fazer o que ele faz para os outros. Kresten pegou o desenho e olhou para além da imagem, seus olhos brilhavam. Abriu um sorriso mostrando as covinhas na bochecha com seus dentes tortos onde nunca foram tão retos e delicados. Feição de uma criança ao receber um doce da mãe, a ingenuidade que o deixava vulnerável pela pureza de receber algo sincero. Nunca mais vou esquecer a desconstrução das linhas de expressão de alguém que guarda com dor e amor um passado em contornos de linhas leves, por um desconhecido.
Kresten entitulou: " Que seja nossa
Wunderkammer" .
Nos abraçamos e nunca mais nos vimos.
*(íidiche) bebida alcólica.